Brasileiros sofrem extorsão no caminho de Buenos Aires

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Brasileiros sofrem extorsão no caminho de Buenos Aires

Uruguaiana, 16.4.07 – Ao percorrer os 732 quilômetros entre Uruguaiana (RS) e Buenos Aires, Agência RBS e o jornal argentino Clarín documentaram a causa da revolta de motoristas brasileiros usuários das estradas argentinas: uma complexa rede de extorsão que contamina a polícia rodoviária da Argentina.
Com um automóvel sem identificação, alugado em Uruguaiana com todos os itens exigidos pela lei argentina, dois repórteres viajaram até Buenos Aires no dia 5 de abril, no feriadão da Semana Santa.
Logo no km 474 da Ruta 14, a principal ligação entre as duas cidades, o prenúncio do que se revelariam quilômetros de ameaças incisivas – em menor ou maior graus. Um grupo de policiais pára o veículo para vender um jornalzinho da corporação:

– Não quer comprar uma revista da polícia, chefe? São 10 pesos – questiona um policial.

– Não, obrigado – responde o repórter.

– Tem certeza de que não quer? Até onde mesmo pretende ir? – insiste o policial, com um meio sorriso e o tom intimidador de quem sabia o que aconteceria à frente.

Coincidência ou não, em 10 horas de viagem o veículo da reportagem seria barrado outras quatro vezes.
Em apenas duas blitze a passagem foi liberada diretamente – enquanto veículos argentinos transitavam sem placas, com pára-brisas quebrados e com luzes queimadas. No último bloqueio, às 17h, o achaque que se delineava foi comprovado.
Além de “dar descontos”, o policial Omar Sinner, suboficial da polícia rodoviária de Entre Ríos, aceitou propina, pressionou pelo pagamento imediato de uma multa por uma infração inexistente e vendeu o sonho do mau motorista: um salvo-conduto para praticar qualquer infração por 24 horas.

РTe fa̤o um descontinho. Se me pagares, ṇo ṿo poder te cobrar por outra infra̤̣o Рdisse cinicamente Sinner.

Na viagem de retorno, realizada no dia 7 de abril somente pelo repórter de Agência RBS, a surpresa: a “proteção” oferecida pelo suboficial é aceita nas duas oportunidades em que o veículo é parado, suspendendo a alegação de que novas infrações haviam sido cometidas. Nas páginas seguintes, você lerá o diálogo que prova que, mais do que apenas a má conduta de um policial, há uma cadeia de corrupção que estimula a extorsão e a impunidade na polícia rodoviária Argentina.
Dirigir com placa brasileira no país vizinho é arriscado. Mesmo com todos os equipamentos exigidos, o motorista não escapa de parar em praticamente todos os bloqueios.
E mesmo que mostre estar tudo em ordem com o veículo, precisa livrar-se de acusações em que basta a palavra do policial, como excesso de velocidade, ultrapassagem em linha dupla.
Em espanhol, propina é chamado “coima”. Não admira que na Argentina o substantivo tenha perdido espaço para o verbo: coimear. Entre Buenos Aires e Uruguaiana está a rota da propina. Ou, como dizem os hermanos, “la ruta de la coima”.

Comprovante serve para evitar novas cobranças

Às 17h do dia 5 de abril, quinta-feira que iniciou o feriadão da Semana Santa, no km 138 da Ruta 14, principal ligação entre Uruguaiana e Buenos Aires, o carro da reportagem foi parado pela quinta vez em uma blitz da polícia rodoviária argentina, a “policia caminera”. O diálogo com policiais foi gravado ao longo de 23 minutos de abordagem e negociação, com o testemunho de um jornalista do Clarín, da Argentina. Confira, a seguir, a conversa:

“Vou incomodar pela faixa dupla, chefe”

Policial 1 – Permita-me ver sua carteira de motorista, a Carta Verde (seguro obrigatório para circular no Mercosul) e os documentos do veículo.

Repórter – Aí estão.

Policial 1 – Me avisaram que você passou na faixa dupla amarela. Meus colegas me comunicaram lá atrás, disseram que não puderam pará-lo. Passe por aqui (o policial pede que o repórter saia do carro).

O repórter sai do carro e é levado até o suboficial Omar Sinner, em uma viatura policial de placas ERX 840

Policial 2 – Como vai?

Repórter – Tudo bem.

Policial 2 – Vou incomodar pela faixa dupla, chefe, não sei se se você se deu conta…

Repórter – Creio que não cruzei a faixa dupla.

Policial 2 РṆo percebeu a infra̤̣o?

Repórter – Não. A verdade é que não ultrapassei em faixa dupla. Venho com bastante cuidado, porque não estou no meu país.

Policial 2 – Me passaram isso, que o senhor passou sobre a linha dupla amarela, é possível que não tenha se dado conta. Está mal demarcada. Mas se considera como se estivesse bem (pintada).

Repórter – Ela está mal demarcada, é isso?

Policial 2 – Olha, esta é a sua falta, chefe. Linha dupla amarela. Sabe ler aqui, pode ler? A multa é de 368 pesos. É feito um desconto por pagamento imediato (a lei argentina realmente prevê esta possibilidade). Nós lhe damos um comprovante de pagamento.

“Eu posso te fazer um desconto”

Repórter – Eu não ultrapassei pela linha dupla, o senhor mesmo diz que ela está mal demarcada.

Policial 2 – Olha, aqui, o que eu posso te fazer é um desconto. Se me pagas agora, em vez de cobrar o que está no comprovante, lhe cobro… Se pode fazer um desconto de 25%, 276 pesos (R$ 220), é o que fica no boleto para pagar. Se chegares a ter outro inconveniente na estrada, o comprovante vai lhe servir. Se chegarem a pará-lo em outro posto de controle, ou o que seja, você lhes apresenta esse papel.

Repórter – Desculpe, eu não compreendi essa última parte.

Policial 2 – Eu te dou o comprovante. É a prova que você quitou a infração de trânsito. Se outro policial o parar, por qualquer outra infração de trânsito, você mostra o comprovante de que já pagou aqui. Por 24 horas, não podem multá-lo por outra infração de trânsito.

Repórter – Ah, é como um desconto em outra infração…

Policial 2 – Claro.

Repórter – Então eu posso cometer outra infração e, depois de pagar essa multa ao senhor, eu não pago outra, é isso?

Policial 2 – Exato.

Repórter – É isso?

Policial 2 – Você está coberto, por 24 horas. Aqui em Entre Ríos.

“Podes pagar com reais, pesos ou dólares”

Repórter – Realmente, eu não tenho condições de pagar essa multa. Eu já venho com o dinheiro contado…

Policial 2 – O dinheiro… Podes pagar com reais, pesos, dólares… Eu aceito qualquer moeda para quitar a infração.

Repórter – Ou dólares? E aqui mesmo? Não tenho que ir a um escritório?

O policial tosse, aparenta nervosismo

Policial 2 – Isso aqui é um posto móvel. Se confecciona o recibo neste lugar.

?Se você não pode pagar 276 pesos, posso baixar para 220?

Policial 2 – Faço o recibo? Em dólares ou pesos ou…

Repórter – É que eu… eu realmente não tenho dinheiro para pagar.

Policial 2 РQuanto voc̻ pode pagar?

Repórter – É que eu sou estudante. Sei que o senhor está fazendo o seu trabalho, mas…

Policial 2 – Por isso, até 200 pesos (R$ 160) está bom?

Repórter – Mas como o senhor vai fazer uma multa em um valor menor?

Pelo rádio, chega um chamado de um posto policial localizado dois quilômetros antes do local da abordagem. Este primeiro grupo fica encarregado de avisar sobre carros de placa estrangeira, para que sejam parados logo depois.

Policial 2 – Adiante!

Policial por rádio: … um paraguaio.

O policial volta a falar com o repórter

Policial 2 РOlha, 220 pesos (R$ 176) ̩ o que eu posso te fazer.

Repórter – Essa é outra infração, então?

Policial 2 – É a mesma. Ou seja… é uma falta grave igual. Se você não pode pagar 276 (R$ 220), posso baixar para 220 pesos (R$ 176). Então, chefe, fazemos o recibo ou não?

Repórter – Tenho alternativa?

Policial 2 РṆo tem alternativa.

Repórter – Lamento, mas não tenho como pagar este valor. Se fosse uma infração que eu realmente tivesse cometido…

Policial 2 Р138 pesos (R$ 110), podes pagar? Ṇo posso baixar mais.

Repórter – A original era de quanto?

Policial 2 Р276 pesos (R$ 220), eu posso baixar at̩ 138 (R$ 110).

Repórter – Então eu posso pagar 138 (R$ 110) em vez de pagar… 276 (R$ 220).

Policial 2 – Isso.

É ILEGAL

O pagamento de uma multa não pode eximir o motorista de cumprir as leis de trânsito. Garantir proteção por determinado período nas estradas é uma forma de extorsão. A Agência RBS comprovou que o esquema é reforçado por outros policiais, que aceitam a multa anterior para abrir mão da propina (leia na página 27). Assim é formada uma rede, na qual o primeiro a receber o pagamento ganha a cobertura dos demais.

É MENTIRA
Se a demarcação não é visível, não pode dar origem a uma multa. Nesse caso, a má sinalização é utilizada pelo policial como estratégia a seu favor com a seguinte lógica: “é compreensível que o senhor não tenha visto a demarcação, mas infringiu a lei e deve ser multado”.

É VERDADE
A legislação argentina permite o pagamento em moeda estrangeira e no local da infração, diferentemente da brasileira. O policial deve checar por rádio a cotação em pesos da moeda com que o infrator vai pagar a multa.

É uma liquidação

“Você ajuda me pagando, eu te ajudo fazendo um desconto. Para não te cobrar o que é realmente a multa, te cobro menos por amizade, digamos.”

“Cobramos mais barato para que a pessoa não tenha problemas adiante”;

Repórter – Não vai ficar difícil para o senhor explicar que eu tive uma infração e que está me cobrando menos?

Policial 2 РAcontece que cobramos mais barato da pessoa para que ela ṇo tenha problemas mais adiante. Enṭo, para que voc̻ leve um comprovante de pagamento e ṇo tenha problemas mais adiante, lhe cobramos menos dinheiro. Entende?

Repórter – Claro…

Policial 2 -138 pesos (R$ 110) pagas aqui. Faço o recibo e assim já não demoras mais.

“Se você não quiser o comprovante, não te dou”

Repórter – Não podemos deixar por 100 pesos (R$ 80)?

Policial 2 – Por 100 pesos? Mas aí você não leva o comprovante de pagamento.

Repórter – Ah… Por 138 pesos (R$ 110) posso levar o comprovante…

Policial 2 РSe voc̻ ṇo quiser o comprovante, ṇo te dou.

Repórter – Não complica para o senhor?

Policial 2 – Não, não. Se você não o quer…

Repórter – Para ser claro. Se eu não quiser o comprovante, posso pagar menos, é isso?

Policial 2 – Exatamente.

Repórter – Não é difícil explicar a multa?

Policial 2 РTe fa̤o enṭo por 100 (R$ 80)?

Repórter – Mas com comprovante de pagamento, pode ser?

Policial 2 – Sim, sim.

“Não tem outra opção”

Repórter – É coincidência, desculpe perguntar, ou sempre param os estrangeiros?

Neste momento, há dois motoristas paraguaios esperando a vez para falar com o suboficial, que mostra impaciência.

Policial 2 РEste andou na linha dupla tamb̩m (apontando para um dos estrangeiros).

Repórter – Mas sempre estrangeiros?

Policial 2 РOcorre que a maioria das pessoas daqui conhece a estrada, e quem vem de fora ṇo a conhece.

Repórter – Por curiosidade: se por acaso eu não pagar, o que acontece?

Policial 2 – A conseqüência é que depois chega a multa na tua casa.

Repórter – Na minha casa no Brasil?

Policial 2 – Exatamente.

Repórter – Bom… então tudo bem. Prefiro que chegue na minha casa.

Policial 2 – Mas já estou fazendo a multa aqui. A multa é paga no lugar. Essa classe de infrações é paga aqui.

Repórter – Em síntese, aqui eu não tenho outra opção?

Policial 2 РṆo tem outra op̤̣o.

“Eu fiz um desconto para ti”

Repórter – A infração original era por linha dupla amarela. Qual é a infração pela qual o senhor me multou agora?

Policial 2 РPela mesma infra̤̣o.

Repórter – Mas varia tanto assim o valor?

Policial 2 – Você diz que é a primeira vez que anda por aqui. E “bueno”, estou fazendo uma liquidação.

Repórter – Liquidação?

Policial 2 – Estou fazendo por pouco menos.

Repórter – Gracias, muy amable…

Policial começa a lavrar a infração. Na pressa, escreve o nome do pai do repórter, que aparece no documento, como autor da infração.

Policial 2 -Te cobro então… te cobro a multa. Te dou o comprovante de pagamento aqui. Me pagas (nervoso)?

Repórter – Ah, tenho que pagar aqui? Mas não vai para minha casa?

Policial 2 – Não. Já fiz a multa aqui. Assina e me paga. Assim, podes seguir viagem. Toma, assina! Eu fiz um desconto para ti… 82 pesos (R$ 65). Toma, assina aqui (mais nervoso).

Repórter – Ah, 82 pesos! Então de 270 pesos (R$ 216) foi para…

Policial – Sim, 82 pesos (R$ 65).

“Te apura, que tenho outro infrator na fila”

Repórter – Só me esclareça uma coisa…

Policial 2 – Te apura um pouquinho, que tenho outro infrator na fila!

Repórter – Ah, o senhor tem outro na fila…

Policial 2 – Assina logo e segue viagem.

Repórter – Se não pagar, o que acontece?

Policial 2 РTem de pagar, paga-se aqui. Seṇo, o carro fica detido.

Repórter – E daí tenho que ir caminhando?

Policial 2 – Exatamente. É assim aqui.

Repórter – Aqui é sempre assim, né? Eu não estou sendo enganado?

Policial 2 – É sempre assim. Uma assinatura aqui! Não sei por que tantas explicações e não entende! Eu te expliquei clarinho como é.

Repórter – É que a gente é sempre advertido quando entra para não fazer nada ilegal…

Policial – Te cobro então! Te dou a cópia…

Repórter – Vou pegar no carro (o dinheiro).

“Isso é uma gauchada. Gauchada é amizade”

Depois de 45 segundos, o repórter entrega uma nota de 100 pesos (R$ 80) ao policial. Ao ver o jornalista conversando com o colega do Clarín, pede pressa.

Policial 2 РEu ṇo estou brincando aqui na estrada, querido. Ṇo estou brincando.

Repórter – Ah, sei, é o seu trabalho né…

Policial 2 РClaro, as pessoas esṭo apuradas. Dois pesos ṇo tens?

Repórter – Sinto, mas não tenho troco. É um gasto que não planejava ter.

Policial 2 – Faltam dois pesos.

Repórter – Não podes me fazer mais um descontinho? Por 80 (R$ 64)?

Policial 2 – Bueno…

O policial entrega só 10 pesos de troco, para uma nota de 100. O correto seria 18 pesos.

Repórter – Mas o senhor me cobrou 90?

Policial 2 РPreciso de dois pesos. Ṇo tenho para te dar o troco.

Repórter – Mas me faz por 80…

Policial 2 РMas e eu aqui, como ̩ que fico (perde a paci̻ncia)? Toma!

Repórter – Gracias.

Depois de 20 minutos, a reportagem volta ao local, alegando ter se perdido.

Repórter – Perdão por voltar. Me perdi. Onde me disseste que preciso dobrar à direita?

Policial 2 – Você tem que ir diretinho até o cruzamento na via. Aí está a Gendarmería, sob a ponte. Vão desviá-lo à direita.

Repórter – Com o que eu te paguei não preciso me preocupar?

Policial 2 – Não, não… Se te pararem na estrada e te disserem algo, você mostra o boleto que pagaste aqui.

Repórter – E digo a eles o teu nome?

Policial 2 – Não, está tudo aqui. Meu nome está aqui no boleto.

Repórter – Como se chama?

Policial 2 – Omar Sinner.

Repórter – E sempre há desconto assim?

Policial 2 – Se você quer pagar no momento, fazemos um desconto… por “gauchada”.

Repórter – Ah, por gauchada… E o que é gauchada?

Policial 2 РVoc̻ ajuda me pagando, eu te ajudo fazendo um desconto. Para ṇo te cobrar o que ̩ realmente a multa, te cobro algo menos por amizade, digamos. Isso ̩ uma gauchada, gauchada ̩ amizade.

É ILEGAL
O policial não pode mudar a categoria de uma multa para forçar o motorista a pagar por uma infração mais barata, como se fosse uma “liquidação”. Dizer que é para “não ter mais problemas adiante” é uma forma de pressionar por pagamento imediato, que não é obrigatório.

É ILEGAL
Receber dinheiro por uma infração sem dar ao motorista um comprovante do pagamento configura corrupção.

É UMA ARMADILHA
Nos 23 minutos em que o veículo da reportagem ficou no bloqueio, apenas carros estrangeiros foram parados – dois paraguaios. Embora não haja estatística de abordagens por origem do veículo, automóveis argentinos transitam sem as mínimas condições nas rodovias federais. Nos 1.464 quilômetros percorridos entre Uruguaiana e Buenos Aires, ida e volta, a reportagem passou por cinco veículos sem placas (abaixo), quatro com a luz queimada e dois com o pára-brisa dianteiro quebrado

É MENTIRA
Conforme o comissário-geral Jorge Alberto Roldán, da Direção de Prevenção e Segurança Viária de Entre Ríos, nenhum condutor é obrigado a pagar na hora uma multa. Ou seja, independentemente da infração, o condutor estrangeiro ou argentino pode pedir que enviem a multa a sua casa.

É MENTIRA
Um carro só pode ser apreendido na Argentina por documentação adulterada, falta de documentos que certifiquem a propriedade do veículo ou se o motorista estiver bêbado. Nunca por infrações como passar sobre a linha dupla amarela ou andar sem o cinto de segurança.

No retorno, a rede de corrupção se completa

Na viagem de retorno de Buenos Aires, iniciada às 8h e terminada às 23h15min do dia 7 de abril, o achaque à reportagem no trajeto de ida deixa de ser um fato singular e se torna parte de uma rede de extorsão. Por duas vezes, o veículo foi parado por policiais, que apontaram supostas irregularidades – primeiro em relação à validade do seguro, depois por excesso de velocidade. Quanto ao seguro, a validade vencia à meia-noite do dia 7 – portanto, estava dentro do prazo. Durante todo o trajeto, a velocidade não passou de 110 km/h – máximo permitido pela lei argentina. Nas duas ocasiões em que a Agência RBS foi abordada, o comprovante do pagamento da primeira multa fez os policiais recuarem na intenção de extorquir o motorista. Desta vez, os policiais não foram identificados.

Primeiro bloqueio: Km 139, às 16h

Policial – Permita-me ver a sua carteira de motorista, o seguro e a documentação do veículo?

Repórter – Aqui está.

Policial – Está vencido o seguro. Vale por três dias, a partir do dia 4. Hoje é 7… Saia do veículo.

Policial – Vais ter que pagar uma multa.

Repórter – Olha, aqui é Entre Ríos, não?

Policial – Sim.

Repórter – Quando vim, tive a má sorte de falar com o senhor Omar, que parece que trabalha nesta região, não?

Policial – Sim.

Repórter – Ele me multou e me disse que o que havia pago me garantia que não iam me multar de novo.

Policial – Claro. Onde tens essa multa?

Repórter – Tenho no carro.

Policial – E por que era?

Repórter – Por ultrapassar em faixa dupla amarela.

Policial – Ah, por faixa dupla.

Repórter – De fato, como já paguei um monte e não planejava gastar…

Policial – O negócio é que sem seguro… Aqui é onde trabalha Omar, nesse posto. Hoje não está, está em casa. No caminho para o Brasil, vais encontrar muitos postos. E vão te encontrar sem isso (o seguro)…

Repórter – Sim.

Policial – Para chegar a Uruguaiana vão querer te cobrar. O que posso fazer é te fazer mais barato, com um boleto dizendo que podes ir sem seguro, por 92 pesos (R$ 73). Porque o outro controle vai te parar e querer te cobrar 300 pesos, e aí vais ter que pagar. Te faço por 92 porque já te cobraram outra.

Repórter – Juro que já não tenho dinheiro. E como o senhor Omar me disse que era uma garantia…

Policial – E não podes pagar nada? 30 pesos (R$ 24)… Para te dar o papel e assim já não te incomodarem mais… Com recibo.

Repórter – Me servirá para seguir?

Policial – Coloco no papel que te esqueceste do seguro. Não escrevo que está vencido, mas que não tens porque te esqueceste.

Repórter – O que eu tenho é só para comer, não dá para mais nada…

Policial – Bom, anda. Mas se outro posto te parar… Pronto, vai.

É MENTIRA
O seguro de três dias começara a valer à meia-noite do dia 4 de abril – ou seja, valeria até a meia-noite do dia 7. Estava dentro

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

> Ao ser parado pelos policiais argentinos mantenha a calma. Irritar o motorista, deixando-o esperar, é uma tática para cobrar a propina
> O pedido de propina dificilmente é feito no veículo. O motorista é levado por policiais a uma sala ou a um carro onde está o coordenador do grupo
> A lei argentina exige equipamentos que não são requeridos no Brasil. Certifique-se de que você tem todos os itens exigidos
> Nas estradas próximas a Buenos Aires, o limite de velocidade é de 130 km/h. Em geral, as rodovias federais apresentam limite de 110 km/h, mas fique atento às zonas urbanas

A LEI
Equipamentos exigidos pela lei argentina para automóveis
> Extintor de incêndio com verificador de carga
> Uma barra para reboque
> Um kit de primeiros socorros
> Dois triângulos
> Cinto de segurança
> Apoio para a cabeça nos bancos dianteiros
> Carteira de motorista
> Seguro obrigatório do automóvel, conhecido como Carta Verde (obtido em corretoras)
> Documento original de propriedade do veículo
> Autorização para dirigir na Argentina, caso não seja o dono do veículo (fornecida pelo proprietário e registrada em cartório)

Contraponto

O que diz o comissário-geral da Direção de Prevenção e Segurança Viária de Entre Ríos, Jorge Alberto Roldán
“Vamos investigar até as últimas conseqüências, isso não vai ficar assim. Não podemos ter gente assim trabalhando. Dou minha palavra de que, se houve ilegalidade, ela será punida. No último ano, não tivemos denúncias de pedidos de propina. O suboficial Omar Claudio Sinner está sendo investigado e foi afastado da função que cumpria. Ele já não trabalha em postos da polícia rodoviária e, enquanto a investigação dos documentos avança, atuará como guarda de trânsito na cidade de Diamante.”

Último bloqueio Km 341, às 22h

A última parada ocorre em um posto policial no km 341, às 22h do dia 7. Na blitz, um policial faz a abordagem e leva o repórter para a sala do chefe do posto. Não há pedido de propina, mas novamente o comprovante de pagamento da primeira multa serve como proteção.

Policial РṆo viu a blitz?

Repórter – Vi e baixei a velocidade.

Policial – Depois há acidentes e lamentam.

Repórter – A verdade é que eu vinha a 110 km/h.

Policial – Na curva, tem um sinal que diz para vir a 60 km/h. Depois, há outro que diz 40 km/h e um de 20 km/h e depois um policial te manda parar. De onde você vem, de Buenos Aires?

Repórter – Sim, vou para Uruguaiana.

Policial РVai pagar a multa ou ṇo?

Repórter – Não. Já me multaram em Entre Ríos.

Policial – Onde?

Repórter – Em um posto de Entre Ríos, o senhor Omar me parou e me multou. Não posso pagar mais multas.

Policial – Tens o recibo?

Repórter – Sim.

Policial РTraga-o, enṭo.

O repórter volta ao carro e depois de um minuto apresenta o recibo.

Policial – Mas te cobraram pouquinho…

Repórter – Sim, começamos com 200 e poucos pesos. Ele me multou porque disse que ultrapassei em faixa dupla amarela. Ele me disse também que, se me parassem de novo, em Entre Ríos, que dissesse que já tinha sido multado.

Por um minuto, o policial olha para o papel.

Policial – Pois já está, podes ir.

Seis policiais são afastados na Argentina

Uruguaiana, 16.4.07 – Diante da publicação conjunta pela Agência RBS e pelo Clarín de gravações e fotos provando a existência de uma rede de extorsão a brasileiros na Ruta 14 – a principal ligação entre Uruguaiana (RS) e Buenos Aires -, a polícia rodoviária argentina afastou ao meio-dia de ontem seis policiais. Entre eles está o suboficial Omar Sinner, que no dia 5 de março “deu descontos”, aceitou propina, pressionou pelo pagamento imediato e vendeu a um repórter da Agência RBS um salvo-conduto contra novas infrações. Os outros investigados são o comandante do posto policial de Concepción del Uruguay e quatro patrulheiros que trabalhavam na rodovia.
Para punir os suspeitos, a polícia argentina disse que se baseará nos documentos produzidos pela reportagem. Enquanto a investigação avança, outros policiais foram deslocados para substituir os afastados.
– Atuaremos com o rigor da lei. O funcionário que tenha cometido faltas será afastado da instituição policial. O resultado da investigação jornalística nos preocupa – disse ontem o comissário-geral da Direção de Prevenção e Segurança Viária de Entre Ríos, Jorge Alberto Roldán.
Na sexta-feira, Roldán já havia anunciado o início da investigação da denúncia, que ganhou destaque na imprensa argentina. Na Semana Santa, os 732 quilômetros entre Uruguaiana e Buenos Aires foram percorridos em um automóvel com placa brasileira, com todos os itens de segurança exigidos pela lei do país vizinho.
No km 137 da Ruta 14, o veículo foi parado pela quinta vez em barreiras policiais. A alegação: ultrapassagem em faixa dupla, em um ponto em que as placas de sinalização indicavam demarcação deficiente.
РTe fa̤o um descontinho. Cobramos mais barato para que a pessoa ṇo tenha problemas adiante Рdisse o policial Sinner, salientando que o pagamento deveria ser feito na hora.
Após começar cobrando 276 pesos (R$ 220), o policial baixou o valor para 80 pesos (R$ 64), assinando um auto de infração que garantia proteção para o caso de novas paradas no caminho. Na viagem de retorno, realizada no dia 7 de abril, somente pelo repórter da Agência RBS, por duas vezes o veículo foi barrado. Em ambas, a proteção funcionou. Primeiro para evitar uma suposta irregularidade no seguro, e depois para evitar uma multa por excesso de velocidade. Todos os casos ocorreram em Entre Ríos.
Embora o policiais tenham insistido para que o pagamento fosse feito na hora e ameaçado apreender o carro, a quitação imediata de uma multa não é obrigatória na Argentina. Além disso, o automóvel só pode ser retido em casos de documentação adulterada, falta de documentos que certifiquem a propriedade do veículo ou se o motorista estiver bêbado.

Suboficial vira guarda de trânsito

Morador da cidade de Concepción del Uruguay, o suboficial Omar Sinner foi rebaixado a guarda de trânsito. Ele exercerá a função na cidade de Diamante, enquanto não termina a investigação que apura o envolvimento dele e de cinco colegas em uma rede que extorsão a brasileiros na Ruta 14. Durante 23 minutos em que foi gravado com auxílio de uma câmara escondida, ele fez as seguintes declarações:
“Por 100 pesos eu posso fazer. Mas aí você não leva o comprovante de pagamento.”
“Se outro policial o parar, por qualquer outra infração de trânsito, você mostra o comprovante. ”
“A faixa dupla está mal demarcada, mas se considera como se estivesse bem pintada. Vou ter que multá-lo.”
“A multa é paga no lugar. Essa classe de infrações é paga aqui. Se não pagar, o carro fica detido.”
“Se você pagar no momento, fazemos um desconto… por gauchada. Você me ajuda me pagando, eu te ajudo fazendo um desconto. Te cobro menos por amizade, digamos. Por gauchada.”
“Você diz que é a primeira vez que anda aqui. Estou fazendo uma liquidação.”

Leitores denunciam rotina de extorsão

Até as 20h de ontem, a Agência RBS havia recebido 51 denúncias de motoristas obrigados a pagar propina nas estradas argentinas. A seguir estão alguns relatos que revelam a versatilidade dos policiais: as vítimas vão desde motoristas profissionais a estudantes de excursão, passando por turistas em carros de passeio.
“Eu e meu marido também fomos extorquidos em Entre Ríos em setembro de 2005. Espero realmente que depois dessa reportagem alguma providência seja tomada.”
Rosemeri Soares РṢo Jos̩
“Como gosto muito da Argentina, agora atravesso de ferry, via Colônia do Sacramento (Uruguai), escapando da “coima”. Há anos é assim e não acredito que irão corrigir este problema.”
Saraiva Silva – Jaraguá do Sul
“Tenho uma importadora e uma vez por mês viajo à Argentina. Mesmo que esteja tudo em ordem, começa a extorsão. Pedem dois triângulos, kit de primeiros-socorros, capa mortuária e, caso não tenha um destes e outros itens, te multam em 300 pesos. Neste meio tempo eles confiscam os documentos, te levam para uma salinha e fazem você pagar ou não segue viagem.”
Gustavo Rossi
“Em julho de 2006, voltando de Foz de Iguaçu, fui coagido a comprar uma rifa da “Policía Caminera”, com direito a adesivo no pára-brisa e a promessa implícita de não ter problemas.”
Jorge Ebert
“Sou professor do curso de mestrado na Universidad Nacional de Misiones e constantemente recebo em aula os relatos dos inúmeros alunos brasileiros que fazem um percurso semelhante e sofrem os mesmos problemas.”
Augusto Jaeger Junior
“Sou argentino e recomendo aos “hermanos” que no paguem propina aos policiais corruptos e que os denunciem em uma delegacia policial. Me envergonha muito que estas coisas ocorram.”
Claudio L. Roverano
“Sou brasileira e moro em Buenos Aires. Viemos para o Brasil em dezembro de carro e pagamos quatro vezes propina até Uruguaiana. Espero que as autoridades argentinas tomem alguma atitude agora.”
Marislane Bortolotto
“Nós, em São Borja, que temos facilidade de ir e vir, estamos acostumados a este tipo de abordagem, especialmente à noite. Depois das 18h, parece que eles aparecem do nada. Já vamos preparados, sempre com alguma propina.”
Raul Marques РṢo Borja
“Por duas vezes, ao ir a Buenos Aires, fui parado. O policial queria 200 litros de gasolina. Pechinchei e dei US$ 50 direto para ele. Na outra vez já levamos uns dólares para a propina, que fazer? Não dá para complicar em outro país…”
Carlos Augusto de Moura
“Também fui “assaltado” na Ruta 14. São uns bandidos disfarçados de policiais. E é sempre a mesma conversa. Inventam multas inexistentes, ameaçam e forçam a extorsão. Depois de uma hora de conversa, deixei 170 pesos por lá.”
A. Rebelato
“Sou velejador da classe Soling e em 2001, no retorno de uma competição em Buenos Aires, na província de Entre Ríos, passamos pelo mesmo constrangimento. O mais inusitado foi que, de uma multa de US$ 365, pagamos apenas US$ 5, sem recibo. E o pior é que o Mundial deste ano é novamente lá e sabemos que passaremos por tudo novamente.”
André Gick
“Estive para meu azar naquela estrada em março deste ano e passei exatamente pelos mesmos problemas que vocês. Fui humilhado, extorquido e não pude fazer nada. Nem no tempo da ditadura enfrentei situação tão corrupta e desonesta. Eu e minha mulher levamos na mala a vontade de nunca mais voltar.”
Nelson Grimaldi Santos
“Sou argentino, moro no Brasil há 13 anos e a cada viagem ao meu país de origem, com carro brasileiro, me acontece a mesma coisa. Sinto vergonha do que meu anterior país faz com os estrangeiros. Parabéns e mil desculpas aos brasileiros. Só lembro que os argentino não são todos iguais a esses corruptos.”
Marcelo Geronimo Ceppo
“Fiz uma viagem dia 15 de janeiro e fui parado em todos os postos policiais da Rota 14. Só paravam brasileiros, mas os argentinos andavam sem capô do motor. Fui extorquido pela polícia de Entre Ríos no dia 16 de janeiro. Alegaram que eu havia ultrapassado a velocidade máxima. Queriam me cobrar 1,7 mil pesos. Depois me disseram que me fariam por 400 pesos. Depois de muita conversa me disseram que, se eu não pagasse 200 pesos a eles, eu seria preso, e meu carro, guinchado. Eu não podia arriscar, pois estava com minha mãe e minha irmã. Paguei os 200 pesos e dei meia volta para casa.”
Carlos Alberto Boelter
“Fui a Bariloche em julho de 2006 e também fui achacado em dois pesos. Argumentei com o guarda que os faróis estavam ligados, porém ele afirmou que não estavam e queria 50 pesos. Falei que só tinha dois pesos, e ele aceitou para o “café”.”
Leonardo Paix̣o РPorto Alegre
“De carro, nunca mais”
Assim como a Agência RBS , dezenas de brasileiros foram extorquidos nas estradas argentinas. Valéria da Rosa, de Santa Maria, enviou a foto, que mostra o instante em que o marido é levado a uma viatura policial e achacado. O depoimento de Valéria:
“Nos identificamos com o repórter em relação à negociação e à humilhação que passamos. Depois da tal liquidação, pagamos 100 pesos, com a garantia de não pagar nova multa, e fomos liberados. Durante o trajeto, nos pararam em sete postos policiais ou móveis… Com medo, andávamos atrás de caminhões para não expor a placa. A viagem foi horrorosa, sob tensão, muito desgastante e com as crianças chorando. Argentina de carro, nunca mais.”
“nem se preocuparam”
“Fui com uma excursão para Buenos Aires, de ônibus. O motorista pediu para deixarmos três refrigerantes de dois litros guardados no frigobar, pois além da propina, eles exigiam refrigerante dos ônibus. Na três barreiras em que pararam o ônibus, o motorista deu R$ 50, mais um refrigerante. Todo mundo do ônibus viu, e os policiais nem se preocuparam.” – Edu Funks / Novo Hamburgo. Fonte: Diário Catarinense

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