Florianópolis, 26.7.04 – A RBS inicia uma série de reportagens sobre os entraves no processo de duplicação da rodovia mais movimentada do Sul do paÃs que vai colecionando tragédias e promessas há quase uma década.
Há quase uma década, o descaso transforma a duplicação do trecho Sul da BR-101 em processos empilhados nos armários de BrasÃlia. Cinco ministérios estão envolvidos no projeto e dois presidentes da República empenharam a sua palavra em nome desta obra. No total, R$ 24 milhões já foram gastos com o vaivém da burocracia e com os custos dos projetos.
O resultado se resume a apenas oito quilômetros de asfalto construÃdos em Osório (RS) como pano de fundo de um ato polÃtico na gestão do ex-ministro dos Transportes Eliseu Padilha.
Pelos gabinetes da capital federal há uma unanimidade: a falta de dinheiro é o que emperra a execução desta obra desde 1995. Orçado em US$ 800 milhões, o empreendimento é considerado vultoso pelas autoridades econômicas. Somado a isso, as exigências ambientais para o trecho entre Palhoça (SC) e Osório (RS) inflacionaram os custos e alimentaram a reconhecida burocracia do setor público. Os últimos cortes no orçamento da BR-101, no Congresso, comprovam que também falta articulação polÃtica das bancadas catarinense e gaúcha.
Na mesma proporção que as promessas polÃticas se acumulam, os acidentes de trânsito aumentam. A partir deste domingo, a RBS revela a anatomia deste impasse, desvendando por que é tão difÃcil concretizar esse empreendimento.
Números
– CaracterÃsticas técnicas do trecho Sul da BR-101
Extensão: 343,5 quilômetros
Extensão em SC: 243,5 quilômetros
Extensão no RS: 100 quilômetros
Extensão das ruas laterais: 300 quilômetros
Pontes de viadutos: 22 quilômetros
Túneis: 6 quilômetros
Aterros especiais: 10 quilômetros
Programas ambientais: 22
Obs: Até agora já foram gastos R$ 24 milhões com os custos dos projetos para Santa Catarina e para o Rio Grande do Sul, gerenciamento e com o convênio com o Instituto Militar de Engenharia (IME), que auxilia nas desapropriações e nos programas ambientais.
Principal entrave é falta de verba
“Falam há 20 anos desta obra e até agora não fizeram o básico. De onde vem o dinheiro?” Quem faz esta pergunta não é um cidadão comum. Na semana passada, em seu gabinete, o atual ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento – angustiado com as cobranças -, revelava o principal entrave deste processo.
Pelo projeto, a obra de duplicação da BR-101 custa US$ 800 milhões, dos quais 40% sairão das contas do governo e o restante financiado por uma instituição internacional. No começo, o empréstimo seria dividido entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o japonês JCBic. Os japoneses desistiram do negócio. O BID continua como principal fonte financiadora, e assumiu a fatia do outro banco. O contrato, porém, nunca foi assinado.
“Quando assumi (no começo de 2004) só ouvia falar nessa BR-101. Mas que diabo é isso, que esse povo está tão nervoso, pensei. Fui estudar o processo”, garante o ministro.
O governo federal está em débito com o BID porque não cumpriu acordos de obras passadas. Durante o governo do governo de Fernando Henrique Cardoso, o então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, viajou três vezes a Washington (EUA) para tratar do empréstimo. O processo se arrastou. Mesmo assim, a promessa de realização da obra era renovada ano a ano.
“Deram muita atenção à s reclamações dos ambientalistas. O processo acabou atrasando”, justifica-se Padilha, hoje deputado federal do PMDB.
Os técnicos reclamam que não havia previsão de recursos no orçamento. E que todos os entraves burocráticos acabaram servindo aos interesses das equipes econômicas.
“Antes, os procedimentos eram fáceis, o dinheiro não era contingenciado. Depois de 1998, o Ministério da Fazenda passou a considerar que os empréstimos internacionais geram déficit nas contas públicas. Tudo ficou mais difÃcil”, lembra Carlos Alberto La Selva, ex-gerente do Programa Corredor do Mercosul, no governo FHC.
Cobrança para reduzir valor do projeto
Funcionários responsáveis pela obra passaram a ser cobrados para conseguir uma redução no valor do projeto. Até um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) foi encomendado na tentativa de reduzir os gastos. A solução preocupou parlamentares e foi vetada. A duplicação ficaria mais barata se os juros do empréstimo internacional fossem cortados.
“Mesmo com os entraves, se houvesse dinheiro disponÃvel tudo teria sido mais rápido”, acredita Emerson Salgado, presidente da Unidade de Gerenciamento de Projetos do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT). Até o atual ministro do Planejamento, Guido Mantega, confessa: “Esta obra não saiu ainda do papel por falta de dinheiro”.
Cronologia
Julho 1995 – Aprovação pelo BID da polÃtica de investimentos no setor rodoviário do Brasil
Junho 1997 – Publicação do edital para elaboração dos estudos e projetos de ampliação da capacidade da rodovia
Janeiro 1998 a junho 1999 – Minuta do estudo de viabilidade técnico-econômica concluÃda com base no anteprojeto de engenharia, que resultou na indicação da duplicação da BR-101, trecho Palhoça-Osório, como prioritária para a realização de investimentos dentro do Projeto da Rodovia Mercosul, integrante do Programa Avança Brasil, do governo federal
Junho 1998 – Aprovação pelo BID, relativa à modernização da rodovia Palhoça-Osório
Março 1999 – Apresentação de proposta de contratação dos serviços de assessoria e gerenciamento ao Projeto de Duplicação do Corredor Palhoça-Osório
Fevereiro 2000 – Apresentação do projeto ao Ibama, em BrasÃlia
Abril 2000 – Missão Especial do BID para exame completo dos projetos e discussão com projetistas a fim de garantir a qualidade dos projetos de engenharia e segurança de tráfego
Abril 2000 – Promoção pelo Ibama das audiências públicas ambientais em Florianópolis (24/04), Tubarão (26/04) e Osório (RS) (28/04). Solicitação pelo Ibama de mais três audiências públicas, por recomendação do Ministério Público Federal em Laguna, Araranguá e Palhoça
Maio 2000 – Adiamento das audiências públicas complementares pelo Ibama a pedido do Ministério Público Federal de Santa Catarina
Julho 2000 – Viagem do ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, ao BID, em Washington, para tratar da agilização do Contrato de Empréstimo
Agosto 2000 – Solicitação pelo Ibama ao DNER de informações complementares referentes ao traçado em Laguna, Araranguá e aos estudos do componente indÃgena
Novembro 2000 – Entrega pelo DNER das informações requeridas ao Ibama em agosto de 2000
Dezembro 2000 – InÃcio dos trabalhos de levantamento cadastral dos proprietários das áreas a serem desapropriadas. Viagem de Padilha ao BID, em Washington, para tratar do contrato de empréstimo, enfatizando a importância socioeconômica do empreendimento
Fevereiro 2001 – Realização das audiências públicas em Araranguá, Laguna e Palhoça. Elaboração da primeira versão dos editais de concorrência internacional para execução das obras na rodovia.
Burocracia atrasa execução
Projeto considerado o melhor já realizado no âmbito do Ministério dos Transportes mofa nas gavetas do DNIT, misturado a outras dezenas de processos
Prateleiras de ferro guardam os volumes de processos que contam a história da duplicação do trecho Sul da BR-101. Espalhados por três salas do DNIT há livros que chegam a mil páginas. No papel, a rodovia está pronta. Os detalhes no projeto mostram até as placas de sinalização. É o orgulho dos técnicos do DNIT.
“O projeto de engenharia foi considerado pelo BID o melhor já realizado no âmbito do Ministério dos Transportes”, afirma o presidente da Unidade de Gerenciamento de Projetos, Emerson Salgado. Mas o projeto mofa nas gavetas do antigo prédio do DNER, hoje DNIT. Ocupa três salas em três andares, misturado a outras dezenas de processos. O principal arquivo é um tanto arcaico. São fichas amareladas, que lembram o sistema de antigas bibliotecas.
Para o DNIT, a obra está atrasada quatro anos. Pela burocracia no padrão, poderia ter começado em 2000. Mas é só observar a cronologia geral do projeto de ampliação para notar a morosidade de alguns trâmites. Em setembro de 2001, há o registro de um questionamento do Ministério Público sobre possÃveis interferências do empreendimento em área de remanescência de quilombo, na região do Morro Alto, em Osório (RS). A reunião para a definição dos estudos só ocorreu em fevereiro de 2002. Ao mesmo tempo, os entraves ambientais também prendiam o processo nas autarquias de BrasÃlia.
Outra queixa do Ministério dos Transportes é quanto às ações do Tribunal de Contas da União (TCU). Pelo menos três vezes o TCU paralisou o processo. O principal impasse foram os textos das licitações para obra e depois para a fiscalização. O Tribunal argumentava que não seguiam a legislação brasileira. O DNIT rebatia, dizendo que obedecia às regras internacionais, exigidas pelo BID.
Mais desvios em saúde e construção de rodovias
Procurador-geral junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado defende as ações do Tribunal. A alegação é que no Brasil os setores onde mais há problemas de desvios de recursos são o de saúde e de construção rodoviária. Também em função dessa obra, pela primeira vez, sustenta, o TCU chamou para uma reunião um representante do BID no Brasil. “Foi quando descobrimos que não havia nem contrato assinado para financiar a obra. Colocar a culpa na fiscalização não dá”, diz.
Cronologia
Abril 2001 – Emissão da Portaria 203/2001 que declara ser de utilidade pública a duplicação da BR-101
Agosto 2001 – Obtenção de licença prévia para o lote 22/SC, aprovando alternativa em viaduto para a transposição do Morro dos Cavalos, em substituição ao túnel anteriormente projetado
Janeiro a março 2002 – Aprovação e emissão do projeto final de engenharia
Abril 2002 – Revisão das minutas dos editais de concorrência internacional para execução das obras na rodovia. Audiência pública para a apresentação aos interessados dos editais de concorrência internacional para execução das obras
Junho de 2002 – A licença de instalação do projeto foi emitida pelo Ibama
Julho 2002 – Os avisos dos editais relativos à licitação das obras foram publicados no Diário Oficial. Elaboração do edital de licitação internacional para pré-qualificação das empresas para a contratação de serviços de supervisão e gerenciamento ambiental e supervisão das obras
Outubro 2002 – Suspensão das licitações das obras nos pontos em que se encontrarem, até que seja liberado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) a respeito da regularidade dos procedimentos 29 de outubro de 2002 – Publicada suspensão do processo licitatório no DO
Novembro 2002 – Licença para instalação do projeto emitida pelo Ibama
Dezembro 2002 – Editais que estavam suspensos foram liberados pelo TCU. Abertura dos envelopes de licitação suspensa em razão da emissão de um mandado de segurança. TCU bloqueia funcionais programáticas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul
Janeiro 2003 – Publicada no DO portaria do Ministério dos Transportes que determina a suspensão de procedimentos licitatórios em curso que tenham por objeto a realização de obras ou serviços referentes à infra-estrutura de transportes. Editais das obras são suspensos novamente por causa desta ação do Ministério dos Transportes
Março 2003 – Ministério dos Transportes autoriza prosseguimento dos processos licitatórios dos editais de obras
Agosto 2003 – Entrega de propostas e a abertura dos envelopes de licitação referente ao edital das obras na BR 101, no Estado de Santa Catarina
Dezembro 2003 – Publicado no DOU o resultado da habilitação das empresas concorrentes aos lotes de obras em SC
Março 2004 – Publicado no DOU aprovação do Tribunal de Contas da União à continuação do processo licitatório dos editais de fiscalização e gerenciamento ambiental
Exigências ambientais
Uma reunião no Ministério do Planejamento, no governo FHC, surpreendeu o técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) Jorge Luiz Cunha Reis, na época mergulhado no processo da duplicação do trecho Sul da BR-101. A equipe econômica queria saber se a obra não poderia ficar mais barata, com cortes na área ambiental. Dos US$ 800 milhões orçados para a duplicação da estrada, 15% serão direcionados às compensações ambientais. A média mundial desses custos, pelos dados utilizados pelo Ministério dos Transportes, é de 5%.
Reis continua na equipe que cuida do processo da 101. Sob a sua mesa no Ibama, oito volumes detalham projeto do trecho Sul. De Palhoça a Osório, há 26 municÃpios ao longo da rodovia.
Guardião da história das estradas
Em 1970, quando Sidney de Oliveira era um desenhista, funcionário do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), ele percorreu a BR-101, que corta o Brasil de Norte a Sul. Na época, durante o levantamento cadastral da rodovia, em uma conversa com o chefe sobre o futuro daquela estrada, brincou. “Isso não vai ser duplicado nem no ano 2000.”
Hoje, Oliveira está com 80 anos e é o responsável pelos arquivos dos projetos de estradas do Brasil inteiro, inclusive pelos volumes – alguns com até mil páginas – que contam a história da BR-101 Sul.
O ano 2000 passou e a duplicação no trecho da estrada que vai de Palhoça (SC) a Osório (RS) ainda não começou, conforme previu. Este carioca foi quem criou o arquivo técnico do DNER. Em 1991, transferido do Rio de Janeiro para BrasÃlia, deu um jeito de levar junto a mesa em que, segundo ele, o presidente da República João Café Filho (presidente de 1954 a 1955) costumava trabalhar nas reuniões do Conselho Rodoviário Nacional. Fonte DC