Florianpópolis, 24.9.07 – O sentimento de impunidade marca o aniversário de criação do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que completa 10 anos neste domingo. Mesmo com a nova legislação em vigor, são raros os motoristas que cometem crimes de trânsito e são julgados e condenados no Brasil. Em Santa Catarina, os julgamentos também são escassos, e os acusados continuam soltos, e dirigindo. Na Capital, nenhum crime contra a vida envolvendo acidentes nas ruas e estradas foi julgado nos últimos nove anos. No Tribunal de Justiça há um congestionamento de mais de 7 mil processos. Dos mais de 20 mil casos que deram entrada no Judiciário neste perÃodo, metade prescreveu.
Em 1992, um acidente abalou Florianópolis. Um motorista que fazia racha na Avenida Beira-Mar Norte matou a estudante Juliana Barbosa, de 15 anos. A garota e o namorado foram prensados contra o painel do Gol, que estava estacionado, quando o Chevette, em alta velocidade, bateu na traseira do carro do casal.
Em Florianópolis, o réu do único caso levado a júri popular por homicÃdio doloso eventual recebeu liberdade condicional após cumprir dois anos na prisão. Nenhum outro acidente na Capital teve o mesmo desfecho.
Dez anos depois, em setembro de 2002, na mesma avenida da Capital, o empresário Aroldo Carvalho da Cruz Lima bateu com sua BMW no Audi onde estavam Vitor Martins Junior, de 24 anos, e Rafael Geraldo, de 23. Vitor morreu no local, e Rafael, dois dias depois, no hospital. A Justiça mandou o empresário a júri popular, mas o advogado dele recorreu.
Para quem perde um parente, amigo ou conhecido na não-declarada guerra do trânsito, o sentimento é de descrença e revolta. Sete meses após ver a irmã morta na região continental de Florianópolis, Juliana Marceli Alflen, 21 anos – irmã de Fernanda Jenifer Alflen – ainda tem pesadelos e acorda assustada durante as noites. O pai, o comerciante Marcelo José Alflen, 43, está preocupado e espera que a Justiça coloque na cadeia o causador de tanta dor na sua famÃlia.
– Acidentes acontecem, mas neste caso é diferente. Ele causou este acidente. É responsável. Nossa sorte são as imagens que registraram tudo. Até dirigindo ele continua – desabafa.
Mais de 10 mil crimes caem no esquecimento
Nos últimos nove anos, mais de 10 mil processos prescreveram e, assim, ficaram impunes. Entre os motivos do arquivamento das sentenças, especialistas citam as transações penais com o Ministério Público.
– É a falta de estrutura, de pessoal. Muito também é em razão do elevado número de recursos que permite a nossa lei processual – explica o promotor de Justiça da 1ª Vara Criminal da Capital, César Augusto Grubba.
A Corregedoria Geral da Justiça indica que 7.056 ações, inquéritos ou termos circunstanciados relativos a acidentes de trânsito tramitam no Tribunal de Justiça. Na Capital, são 203 processos, entre inquéritos e ações por crimes de trânsito por homicÃdio doloso eventual.
Para não esquecer
Madrugada de 21 de fevereiro deste ano, última noite de Carnaval. As irmãs Fernanda e Juliana Alflen voltavam para casa depois de trabalhar com o pai no comércio ambulante, e foram atropeladas na calçada da Rua General Eurico Dutra, no Bairro Estreito, região continental de Florianópolis. Fernanda tem 18 anos, uma filha de três, e um sonho: concluir o Ensino Médio. Ela é arremessada contra o muro e morre no local. O impacto da batida entorta uma grade de ferro.
Juliana, de 20 anos, também é atingida, mas só tem ferimentos leves. O motorista, Alceu de Oliveira, de 18 anos, abandona o carro no local e foge a pé, sem prestar socorro. Uma câmera flagra a fuga dos ocupantes, o retorno de um deles, a aproximação de um motoboy e, depois, a chegada da PM. O motorista é indiciado por homicÃdio culposo (sem intenção de matar), cuja pena varia de um a três anos, e por lesão corporal culposa, com pena de seis meses a dois anos. Está em liberdade.
Os últimos segundos da vida de Mariana Bento
É madrugada, 5 de agosto de 2006. Andrey e Mariana voltam de uma festa na Lagoa da Conceição. A Ranger dirigida pelo dentista Valter Duarte Pereira, 43 anos, fura o sinal vermelho na Avenida Beira-Mar Norte, atinge o Kadett do casal de namorados e causa a morte de Mariana, que tem 20 anos. Um fotossensor flagra a Ranger furando o sinal a 110 km/h. O motorista da caminhonete deixa o local e dois dias depois se apresenta à polÃcia. Como não houve flagrante, Pereira está em liberdade, e poderá ser indiciado por homicÃdio culposo, omissão de socorro e lesão corporal.
Máquina da Justiça não anda
Foram necessários 11 meses de afastamento do trabalho, quatro meses andando de cadeira de rodas e seis de muletas para Andrey Damasco, de 25 anos, retomar sua rotina. Já passou mais de um ano do acidente que mudou sua vida e tirou a de sua namorada, Mariana Bento, na época com 20 anos. Mas o jovem sente um frio na barriga quando passa pelo cruzamento da Avenida Beira-Mar Norte com a Travessa Rufino José da Silva, no Centro de Florianópolis, o local do crime.
O jovem conta que sonha freqüentemente com a ex-namorada.
– Têm muitas coisas que eu gostava de fazer e não posso mais, como surfar, correr e jogar futebol. Até a faculdade precisei trancar. Ainda sinto muitas dores na virilha e na perna. Minha cabeça mudou muito com tudo isso. Aprendi a dar mais valor à vida – explica Andrey.
– A última coisa que eu lembro é a Mariana sorrindo para mim.
Andrey não perdoa o motorista responsável pelo acidente que, além de não oferecer socorro na hora da colisão, nunca se preocupou em saber sobre o seu estado de saúde.
– Se ele tivesse caráter poderia ter nos ajudado. Gastamos mais de R$ 20 mil com despesas hospitalares. Hoje, duvido que ele sequer se lembre do que aconteceu – aposta.
O motorista responsável pela tragédia, Valter Duarte Pereira, foi chamado à Justiça no mês passado, e será ouvido em novembro, mais de um ano depois do acidente. Os pais de Mariana aguardam pela solução dia após dia.
– Só no dia 28 de novembro é que ele está sendo citado para ser ouvido. Porque, até então, ele não faz nem parte dos autos – questiona o pai de Mariana, Gilmar Bento.
Apesar da nova legislação, nos últimos três anos as lesões e mortes no trânsito cresceram 9% no Brasil. Se as condenações andam a passos lentos na Justiça, nas ruas e estradas catarinenses o número de vÃtimas cresce e ganha dstaque nacional.
Um levantamento do Ministério da Saúde aponta o Estado como campeão no ranking de mortes no trânsito em todo o paÃs. As estatÃsticas, que se referem ao ano passado, mostram que acidentes nas estradas e ruas catarinenses matam, em média, 32,2 pessoas em cada 100 mil.
riaguez é a causa de 75% das ocorrências
Segundo dados do Detran, 75% dos acidentes de transito do paÃs estão relacionados ao consumo de álcool. Em Santa Catarina, a cada dia, cinco pessoas são flagradas dirigindo em estado de embriaguez.
Nesta sexta-feira, a combinação álcool e direção engrossou a estatÃstica. Na BR-101, em Palhoça, na Grande Florianópolis, o gerente de revenda de carros Marcus VinÃcius Drago de Freitas, 40 anos, atropelou e matou o motoqueiro Alex Júnior Pereira, 21 anos, dirigindo embriagado e na contramão da rodovia.
Cerca de 40% dos acidentes nas estradas acontecem com pessoas de até 24 anos. De acordo com as polÃcias Rodoviária Federal (PRF) e Militar Rodoviária (PMRv), em média, mais de dois jovens morrem por dia nas rodovias do Estado. As causas apontadas são excesso de autoconfiança, álcool e abuso de velocidade.
Pena leve
O Código de Trânsito Brasileiro contempla 11 tipos de crimes penais, compreendidos entre os artigos 302 e 312. Entre eles, somente os artigos 302 e 306, referentes a homicÃdios e embriaguez, têm pena máxima superior a dois anos. A maioria dos crimes, como os de lesões corporais e condução de veÃculo em velocidade superior à permitida, tem penas que vão de seis meses a um ano.
De acordo com o promotor de Justiça da 1ª Vara Criminal da Capital, César Augusto Grubba, dificilmente as penas para esse tipo de crime chegam a quatro anos de detenção.
– As condenações aplicadas com mais freqüência são de prestação de serviços à comunidade, como entrega de cestas básicas para entidades filantrópicas – explica.
Aplicação do Código é o desafio
As discussões em torno da aplicação do Código de Trânsito Brasileiro – considerado tão bom quanto o de paÃses desenvolvidos – não encontram resposta para a pergunta que desafia os especialistas: até que ponto uma legislação é capaz de reduzir um dos mais graves problemas sociais, que mata 34 mil brasileiros por ano e deixa impunes os responsáveis pelos crimes cometidos no trânsito?
Há quem acredite que é só uma questão de tempo, e que a aplicação das leis vai se tornar um hábito. Para outros, não adianta uma legislação severa sem um componente fundamental: sua prática.
O promotor da 1ª Vara Criminal de Florianópolis, César Augusto Grubba, acredita que a falta de agilidade dos processos e a penação (aplicação de pena) do Código de Trânsito Brasileiro – que prevê uma condenação mÃnima de dois anos e suspensão ou proibição de dirigir – são os motivadores para a noção geral de impunidade.
– Não é que eu acredite que o mais importante seja o tamanho da pena. Pelo contrário, não adianta a pena ser muito pesada se você não a cumpre. Mais eficaz que a quantidade de tempo é o cumprimento da pena e a certeza da punição – justifica o promotor.
Grubba explica também que existe uma série infindável de recursos dentro do Código Penal, como os de apelação das sentenças, embargos, agravo de instrumento, entre outros, que acabam favorecendo os infratores. Segundo ele, quando os crimes de trânsito são denunciados por dolo eventual, a demora é ainda maior porque, nestes casos, o processo de julgamento ainda passa pelo tribunal do júri.
– Os advogados recorrem da decisão do juiz, recorrem no Tribunal de Justiça, depois no Superior Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal Federal. Assim acontece, e os processos não acabam nunca.
Além disso, na Capital, os processos de crime de trânsito que tramitam na 1ª Vara concorrem com ações de crime contra a vida de outras naturezas. Atualmente, 4.090 processos, entre inquéritos e ações penais, estão em andamento.
– Só Código de Trânsito Brasileiro não é suficiente para diminuir a prática de crimes cometidos com veÃculos. As campanhas de conscientização e a divulgação das condenações são imprescindÃveis, porque um dos maiores Ãndices de reincidência criminal é a certeza da impunidade – completa.
a exclusiva para o setor poderia agilizar
Para o presidente do Movimento Nacional de Educação no Trânsito (Monatran), Roberto Sá, a luta por uma vara especÃfica é antiga, e ajudaria a agilizar os processos. Sá entende que a noção da impunidade é difundida por leis brandas e complacentes.
– Não deveria haver tantos recursos. Os advogados usam de subterfúgios para driblar a Justiça. É um negócio muito sério que, para mudar, precisa de uma lição polÃtica do Estado e de mobilização da população.
S no tribunal os processos enfrentam a burocracia, no plano administrativo do Detran a situação não é diferente. Em geral, um processo leva de seis meses a um ano, em média, para receber o veredicto.
ponto morto*
Sentenças
Condenações: 1374
Absolvições: 677
Prescritas: 10.256
Sessões de júri: 0
Processos
Iniciados: 20.747
Encerrados: 14.796
* Dados referentes aos anos de 1998 a 2006
Fonte: Corregedoria Geral da Justiça
Fonte: Diário Catarinense